Espuma dos dias — Meu confrade, Che Guevara (continuação e fim).  Por Jean Pierre Willem

 

Nota prévia de Júlio Marques Mota

Hoje, sou surpreendido com um texto enviado pelo Dr Jean-Pierre Willem sobre Che Guevara. É a continuação e conclusão do texto que Willem já havia escrito em 28 de Abril passado e que publicámos aqui na Viagem dos Argonautas.

Em tempos de ódio e de desconsideração por quem, por opção e por direito, não afina com o cântico geral, mandar um texto destes pode parecer uma provocação mas sinceramente não é.

Trata-se de um encontro entre dois médicos em que cada um deles, à sua maneira, arrisca a vida no seu amor pela humanidade. Os dois médicos são Jean-Pierre Willem, médico que dedicou toda a sua vida a cuidar dos pobres e em todas as latitudes no mundo, e o outro é, nada mais nada menos, Che Guevara, que na sua ótica arriscou a vida a fazer revoluções em nome do bem estar da Humanidade. Esta era a sua ótica, a de que a revolução podia ser exportada, ao contrário do que ensina Marx, e os resultados estão em todo o lado bem à vista. Curiosamente, a história repete-se e Hillary Clinton fez exatamente o mesmo erro, a Democracia não se exporta, cria-se. As suas Primaveras coloridas são disso um belo exemplo. Ainda agora nos diz ela que “… o facto é que uma insurreição muito motivada, e depois financiada, e armada, basicamente expulsou os russos do Afeganistão” [n.t. em 1989], não obstante os EUA terem sido obrigados a abandonar o Afeganistão em Agosto de 2021, ou seja, 20 anos depois de lá terem entrado para aí instalarem “a democracia”:

(ver aqui)

Mas com isso, não nos confundamos, Clinton nada tem a ver com Che Guevara, nada a não ser num ponto comum: a de que é possível mudar externamente as sociedades mesmo para o que elas não estejam preparadas. No caso de Guevara, a mudança para o socialismo pode ser exportada, no caso de Clinton, é a transição para o capitalismo selvagem que se quer exportada. Nisso, nessa exportação ambos falharam.

Neste texto de Willem trata-se do relato de um médico sobre  o seu encontro com um outro médico no inferno de África, no Congo, país que eu direi ser abençoado por Deus, diz-se que é erro geológico tal a sua riqueza de subsolo, e amaldiçoado pelo Diabo, pois que, dando-se um pontapé numa pedra é muito provável que sucedam duas coisas em conjunto: que se descubra um diamante e que se tenha depois pela frente um esfomeado soldado armado a dizer: esse, diamante é meu.

Trata-se de um texto que vale a pena ler até pelo humanismo que o atravessa da primeira à última página. Em poucas linhas tem-se a noção da riqueza em humanismo daqueles dois homens naquele dia de aniversário de Che Guevara, numa casa que era simultaneamente um bordel e uma casa de jogo num mundo de miséria que é o de Africa. Depois fala-se da miséria numa das “quintas” dos americanos, a América Latina, fala-se da grandeza e da miséria de homens face à vida, face à morte, a morte de Che Guevara. E, meu Deus, com que dimensão quase sobre-humana o médico Jean-Pierre Willem nos descreve a morte de Che e a sua dignidade que ao ver que o seu carrasco era incapaz de disparar lhe diz:

“Dispara, não tenhas medo! Atira!”

O que vos posso dizer não sendo eu Guevarista, é que não fui capaz de reler o texto e de o rever. Passei-lhe apenas o corretor tal a emoção que senti e se manteve durante horas a fio.

Por outro, e em comentário à margem, este relato fez-me lembrar Joseph Losey no seu notável filme Dois homens em fuga, passado também ele na América latina. Não haverá aqui ecos, neste filme, do relato terrível feito sobre a morte de Che? Não sei, vi o filme há cerca de 40 anos, procurei vê-lo agora mas não o encontrei disponível. Não será o cerco aos dois homens em fuga, feito com o helicóptero em cima deles e em círculos, os círculos do poder, equivalente ao cerco que os militares lhe fizeram, a Che Guevara e ao seu companheiro Chino ? Não sei, levanto apenas a hipótese, perante um filme que é sobretudo um filme icónico sobre o poder.

Coimbra, 15 de maio de 2022

JM

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

20 m de leitura

Meu confrade, Che Guevara

(continuação e fim)

 Por Jean Pierre Willem

Publicado por em 13 de Maio de 2022 (original aqui)

 

Lembrete do episódio anterior: Jean-Pierre Willem conheceu um confrade invulgar em África. O médico e revolucionário Che Guevara! A sua discussão continua.

 

Cara leitora, caro leitor

Hoje temos um encontro muito especial. Ernesto Guevara de la Serna, alias Che, festeja os seus 38 anos. Trata-se de comemorar este evento!

Dirijo-me para a casa de jogo clandestina e de prostituição, onde explico às “raparigas” a minha intenção de celebrar um aniversário. A “patroa” acena com a cabeça em sinal de acordo.

Isto envolve um conjunto de requisitos: temos de reservar a sala, comprar uma garrafa de whisky, ter um gira-discos e um disco com as canções da América Latina.

No dia seguinte, apareço por volta das 17h00. Sobre uma mesa encontro uma garrafa de Chivas, um gira-discos e um disco. Por volta das 20:00 Che aparece, sem fôlego; pede desculpa pelo seu atraso. Ele dá-me um abraço quando a música começa a tocar, com a canção La bamba que me tinha cantarolado num outro encontro.

Ele olha-me petulantemente e eu vejo a sua comoção nos seus olhos.

As raparigas começam a dançar. Acompanha-as num frenético bambolear de ancas .

O Chivas acaba com a nossa inibição. Estamos num estado de espírito bem alegre. Ele canta a plenos pulmões. Desfilam todas as canções brasileiras, uma a seguir a outra …

Ernesto está cheio de serotonina.

– Anda meu irmão, vem dar-me um abraço; já vivi momentos de felicidade, mas hoje quase morri de emoção. Tu és realmente fantástico! Este é o meu melhor aniversário de sempre!

Jean-Pierre!… Proponho uma bela aventura. Parto em breve para a Bolívia. Não te vais sentir perdido, tu conheces os contextos da guerra. Se sairmos disto, podemos ir ao Vietname e à Guatemala…

O Chivas fluía, copo atrás de copo. O Che está totalmente descontraído, o nível da garrafa de whisky vai descendo, ele confia em nós e faz conversas dignas de um jovem soldado. Tem um fraco pelo tema do sexo e gosta de falar das suas conquistas femininas; o assunto surge como um leitmotiv. Mas o seu verdadeiro segredo está algures, não ali…

– Sabes…eu teria gostado de me tornar um biólogo famoso, como Pasteur ou Claude Bernard. Fui assistente do Dr. Salvador Pisani, um alergologista de fama mundial, também tive experiência de trabalho de laboratório. E, no final, dei por mim a aterrar em Cuba para iniciar ali a revolução. Como vês, quão estranho é o caminho de um homem. O nosso destino está traçado desde o nascimento?

– Por outras palavras, estavas à procura de fama por qualquer meio. A propósito, gostaria de salientar que Pasteur era um belo batoteiro; é Béchamp que deve ser homenageado e este não é mencionado em lado nenhum. Antes de nos separarmos, gostaria de te dar um pequeno presente de aniversário e falar-te de uma planta magnífica, que poderia salvar milhões de pessoas: um arbusto do matagal, o Iboga. Está difundido no Gabão, no sul dos Camarões, no Congo-Brazzaville e em Madagáscar. A casca da raiz tem um efeito estimulante na astenia física. Contudo, em grandes quantidades, a raiz de Iboga é um alucinógeno, cuja utilização é reservada para cerimónias de iniciação em várias sociedades, o Bwiti para os homens, o Ombuiri para as mulheres.

A absorção das raspas da casca de árvore causa uma espécie de inebriação, atordoamento, torpor, e depois aparecem manifestações alucinatórias. As exigentes cerimónias de iniciação, intercaladas com períodos de sonolência e excitação, duram vários dias.

Nos últimos anos, tem sido mostrado interesse na ação antidroga da raiz. Com doses elevadas de 500 mg a um grama, os viciados em heroína e cocaína experimentam uma fase de excitação, depois alucinação e um sono profundo que dura várias horas, e miraculosamente, quando acordam, já não sentem a necessidade de heroína ou cocaína. O que é que a Natureza não oferece aos pecadores!

– Vou lembrar-me do nome”, responde Che. Esta planta seria muito útil para milhões de toxicodependentes, eu conheço bastantes…

Para uma das nossas últimas reuniões, Ernesto propõe-me um encontro ao longo do Lago Tanganica. Os congoleses construíram aí uma cabana em barro na margem do Kibamba, ao pé de um penhasco de montanha com vista sobre o lago. Ele sobe em poucas passadas largas para chegar ao cume, a cerca de 1200 metros do seu esconderijo.

Quanto ao acampamento base, está estabelecido a uma altitude de seiscentos metros numa montanha que domina o mato, uma verdadeira fortaleza inexpugnável.

Aproveitei a oportunidade para tratar alguns pacientes sob o olhar estupefacto do meu confrade.

Tirámos uma fotografia de nós próprios. Ele está a segurar um grande bebé africano, com o seu cachimbo de lado. Ele gostava de balancear as crianças nos seus braços para as acalmar.

 

Fornecedor de plantas medicinais

Ele continua a insistir comigo para que lhe fale sobre plantas que poderia usar na sua quinta em Cuba. Falo-lhe de uma planta chamada Euphorbia hirta, uma pequena planta umbelífera que é muito eficaz contra a amebíase. Tomado o líquido proveniente da fervura da planta, elimina os parasitas que abundam nos trópicos. Esta planta interessou-lhe ainda mais porque tem um efeito positivo sobre a asma.

Também estava interessado em folhas de coca para estimular os seus guerreiros.

Che também reconheceu o Chrysanthellum africanum, que lhe fez lembrar o Chrysanthellum americanum de Cuba, que dissolve pedras nos rins e trata as hepatites.

Não deixei de lhe falar de Pausinystalia yohimbe, que se encontra no Gabão e no Congo, onde os nomes vernáculos significam “noite sem dormir”, porque a casca da árvore tem uma reputação tónica e sobretudo afrodisíaca.

– És um verdadeiro botânico e sexólogo, poderia recomendar-te a uma universidade cubana para obter uma cadeira de prestígio… Tens uma última planta para o caminho?

Claro, tenho sempre uma de reserva!

A árvore de que lhe vou falar estimulou sempre a imaginação pela sua forma e tamanho grotescos, é o embondeiro chamado Adansonia digitata pelos botânicos. É considerada uma árvore sagrada. Para além dos seus usos alimentares, é: antidiarreico, antirraquitismo e anti-inflamatório, etc. É uma árvore que pode atingir 25 metros de altura com um tronco enorme que pode medir 8 metros de diâmetro. As folhas brancas pendem na extremidade de um pedúnculo e dão frutos ovoides chamados “pão de macaco” contendo sementes pretas embebidas numa polpa farinhenta branca. É um alimento valioso para as pessoas pobres. As folhas contêm a percentagem de cálcio mais elevada e uma mucilagem abundante que incha na água e permite uma melhor digestão. Em caso de diarreia, a polpa do fruto seco é misturada com água ou leite após a remoção das sementes.

O meu confrade está espantado.

Ele já está a imaginar plantar baobás no seu centro de experimentação agro-botânica industrial!

Mas o que me entristece é vê-lo a embarcar numa aventura incerta e mal preparada. Ainda não consigo compreender a sua decisão de ir à Bolívia com um punhado de combatentes.

A estadia do Che em África durou até Março de 1966. Do nosso último encontro, lembro-me de o Che ter colocado as sementes que lhe dei no seu saco, dizendo-me que elas seriam moídas pelo pequeno moinho que tinha acabado de comprar.

O seu abraço, o “abrazo” como os argentinos lhe chamam, será mais intenso do que nas outras vezes; compreendi então que não voltaria a vê-lo.

Disse-lhe até à próxima, apesar de saber que não haveria próxima

Regressou diretamente a Havana onde preparou a sua nova expedição.

É bem conhecida a determinação das autoridades americanas desde o início dos anos sessenta em eliminar a trilogia da Revolução Cubana, os irmãos Castro, Fidel e Raúl, e o Che, com o duplo objetivo de erradicar o comunismo que o provoca à sua porta, e assim recuperar a ilha a fim de nela relançar o comércio.

No início, ele tinha um grupo de cinquenta e três revolucionários, muitos dos quais não estavam preparados nem seguros, em vez dos duzentos e cinquenta homens preparados e escolhidos a dedo.

À chegada, eles eram finalmente vinte e sete guerrilheiros para lutar contra milhares de soldados bolivianos supervisionados por agentes da CIA.

O Che entrou na Bolívia com um nome falso para fomentar uma insurreição. Mas a revolta não arrancou sequer. Em Outubro de 1967, os guerrilheiros tiveram de recuar perto da aldeia de La Higuera.

Cercados por milhares de soldados, resistiu durante três horas antes de ser alvejado na perna e trancado numa escola.

No dia seguinte, as ordens vieram diretamente da presidência: “500-600”. O primeiro número designa o Che; o segundo o destino que lhe é reservado: execução.

 

Por quem é que os sinos dobram?

Face a 5000 soldados bolivianos, o que poderia fazer o Comandante Che Guevara?

E ainda assim! A resistência da guerrilha de Che travou o avanço do exército boliviano.

Mas as possibilidades de escapar em pleno dia dos milhares de soldados concentrados na região são praticamente nulas numa zona de falésias abruptas que terminam numa área desprovida de vegetação, onde os homens seriam utilizados como alvos, como no tiro aos pombos. Quando o Che quis fugir da armadilha com os seus cinco companheiros restantes, o exército bloqueou todas as saídas.

Ainda na esperança de romper o cerco, Ernesto parte apoiando o seu companheiro El Chino, que é surdo, que não consegue ver bem apesar dos seus óculos grossos, e cujos pés foram partidos durante um interrogatório em Lima. Incapaz de andar normalmente, apoia-se em Che para chegar lentamente ao ponto de encontro previsto, situado a mais de um quilómetro de distância.

Antes de chegar à pequena plataforma, El Chino tropeça, perde os seus óculos e põe-se de gatas para os procurar. O Che tenta ajudá-lo. Eles estão na linha de mira de um ninho de metralhadoras: os soldados abrem fogo e Che é atingido na parte inferior da coxa direita. Ele responde com fogo, mas a sua espingarda M-1 foi inutilizada por uma bala que a perfurou. Che agarra então no seu revólver apenas para ficar a saber que já não tem munições; só lhe resta a sua adaga Solingen.

Os dois homens conseguem, no entanto, chegar à plataforma. A emergência agora é que o Che pare a hemorragia. Perto passava uma corrente de água, de água sulfurosa e não-potável, Che senta-se no chão, tira o seu lenço, torce-o para um torniquete, que fixa sobre a sua ferida.

O barulho das detonações e da explosão de granadas impede-o de ouvir o inimigo aproximar-se, especialmente porque está concentrado no que está a fazer. A heroico guerrilheiro, tão caro aos cubanos, o mais temido revolucionário do planeta, é capturado.

A coluna, composta por Che e os seus últimos companheiros, incluindo Regis Debray, entrou em La Higuera por volta das 19h30, onde cintilavam as luzes fracas das lâmpadas de querosene. Os habitantes emergiam silenciosamente da noite para ver passar o que restava dos guerrilheiros, com uma mistura de respeito e medo.

Os militares bolivianos acompanharam Che a uma pequena escola com chão de terra e ordenaram-lhe que se sentasse numa das salas de aula, onde também depositaram os cadáveres.

Um comandante apresentou-se, insultou o Che, ordenou-lhe que falasse, e puxou-lhe a barba tão violentamente que lhe arrancou uma tufa de pelo. Em resposta, Ernesto esbofeteou-o com as costas das suas duas mãos algemadas.

Decidiu-se finalmente escolher entre os três suboficiais que se tinham voluntariado para fazer o trabalho, e foi escolhido o Sargento Mario Teran, que fazia anos nesse dia. O sargento começa por ajudar o Che a levantar-se do banco da escola em que esperava serenamente. Mas ele está tão dominado pelo medo que é incapaz de realizar o seu ato.

O Che encoraja-o a terminar:

– Dispara, não tenhas medo! Atira!

O soldado treme.

Ele dirá: “Os seus olhos brilhavam intensamente. Ele fascinou-me. Eu vi-o grande, imenso…”.

Foi-lhe dada uma bebida, mas não foi suficiente, o seu dedo ainda se recusou a premir o gatilho.

Naquele momento, ouviu-se uma primeira explosão na sala ao lado, depois uma segunda, e Che compreendeu que os seus companheiros estavam acabados.

Às 13h10, os oficiais bolivianos forçaram tanto e tanto Teran e com tanta força para fazer o seu trabalho que ele finalmente cumpriu. Ele disparou uma rajada com a sua UZI enquanto fechava os olhos; estava mal ajustada e o Che ainda estava vivo. Uma bala no coração acaba com ele, um clérigo faz uma oração fúnebre, antes de limpar as manchas de sangue e de recolher o invólucro das balas fatais. Depois o corpo é levado dali.

Enquanto os “vitoriosos” celebravam o evento no Hotel Santa Teresita em Valle Grande, o padre Roger Shiller celebrou uma missa pelo Che na pequena igreja de La Higuera, que estava cheia, a abarrotar de gente. Piedosamente, os fiéis levantam velas acesas em memória do falecido. E durante a noite, o religioso profere um terrível anátema: “Este crime nunca será perdoado. Os culpados serão punidos“.

No dia seguinte, 10 de Outubro, o primeiro dia da era pós-Che Guevara, o seu corpo foi exposto na morgue improvisada, para que a população pudesse verificar que ele tinha de facto deixado este mundo. Ambas as suas mãos são cortadas e enviadas para Havana.

No jardim do hospital, a longa procissão dos bolivianos estende-se, os pequenos andinos retêm a respiração.

A freira Maria Munoz diz, no livro A CIA contra Che: “Reinou um silêncio singular. Nem uma palavra foi dita. Ele olhava para nós, parecia vivo. À maneira do Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry: “Vou parecer morto e não vai ser verdade”. Como se para lhe dar nova vida, os seus olhos, que se tinham tornado tão estranhamente azuis, foram reabertos”.

Desde a sua morte há cinquenta anos, o Che tornou-se um mito.

E se passou um pouco de moda, a sua cara icónica continua a exercer um verdadeiro fascínio.

Ao desaparecer, deixou para trás uma aura emblemática que circularia pelo mundo. À foto do Che morto, um ícone da luta armada, é acrescentada a outra foto, tirada sete anos antes em Havana, na qual ele aparece em trajo militar, com a sua boina e com a estrela vermelha. Estas duas representações dar-lhe-ão a sua dimensão quase-mística.

O meu encontro com este personagem tão cheio de vida continua por vezes a assombrar‑me. Sinto-me alternadamente perplexo e admirado.

Sempre me senti atraído por rebeldes e por outros contestatários. As civilizações precisam de eletrões livres para abanar o coqueiro.

Assim como a aventura de Maio de 68 não me entusiasmou (parecia-me irrisória em comparação com o que estava a acontecer no resto do mundo), o percurso do Che impressionou-me e muito.

Por vezes descrito como uma “máquina assassina” ou um “pequeno carniceiro”, este homem corajoso, fanático e por vezes cruel, mobilizou as paixões mais contraditórias. A sua lenda atravessa os tempos.

As muitas biografias que lhe foram consagradas recordam o destino insensato deste filho nascido na burguesia argentina.

Em 2011, tive a oportunidade de descobrir a quinta medicinal do Che durante uma viagem a Cuba e de falar com os guerrilheiros que o acompanharam.

Depois fui a Santa Clara para visitar o mausoléu do Che. Agachei-me para ver, ao nível do chão, numa caixa de vidro, a sua barba. Mexeu-me as entranhas e, aí, de gatas, chorei como uma criança. Todas as suas experiências de vida voltaram-me à cabeça.

Os restos mortais de Che estão em Santa Clara, a Cidade-Luz, que foi transformada num santuário para perpetuar a sua imagem de guerreiro. Os seus restos mortais vieram de Valle Grande onde tinham sido enterrados após o seu assassinato, naquela parte da Bolívia que é Nancahuasù, tão perto da sua amada Argentina, na verdade à porta da sua casa.

Nunca haverá flores no seu túmulo, ele foi enterrado no subsolo para o fazer desaparecer para sempre.

O preço a pagar no capitalismo é que a hipotética plenitude da individualidade humana envolve sempre o esmagamento dos outros.

“É formidável ver estas novas gerações a resistir querendo propor outra coisa… Não, o Che não está morto!”

 

À laia de conclusão

Só posso citar o posfácio de Edgar Morin, o grande pensador e filósofo: “O Che encarnou a grande religião das revoluções do século XX que estavam a nascer, ou a renascer, no mundo. O facto de ter morrido jovem, magrinho, exposto num lavadouro publico, depois de uma vida que termina nas montanhas que nos fazem recordar o Calvário, só pode evocar Cristo. Podemos portanto falar de uma morte como a de Cristo para o Che. O rosto jovem e caloroso que ele deixa atrás de si aumenta a sua lenda”.

O Che estava à procura de um sistema alternativo.

O seu “Homem Novo” não podia chegar através da violência e da autoridade do Partido-Estado.

Poderão ouvir o Doutor Jean-Pierre Willem falar de Guevara neste pequeno filme (aqui )

 


O autor: O Dr Jean-Pierre WILLEM, médico e cirurgião, é o fundador da associação humanitária Les Médecins aux Pieds Nus (https://medecinsauxpiedsnus.com/), da qual ele é o Presidente.

Licenciado em epidemiologia da SIDA e antropologia médica, é um dos pioneiros da reanimação urbana na origem do SAMU (Argélia, 1961) e o iniciador do conceito de etnomedicina, uma síntese entre a medicina ocidental e a terapêutica tradicional e natural de diferentes países.

Doutoramento em Medicina, Faculdade de Medicina de Lille, França. D.U. em Epidemiologia da SIDA, Medicina Humanitária e Antropologia Médica, Universidade de Paris XII de Bobigny e Universidade de Paris X de Nanterre, e em Cronobiologia (Faculdade de Medicina Pierre e Marie Curie – La Pitié Salpêtrière). Especialista em Medicina Natural. Fundador da Associação Biológica Interncaional (https://association-biologique-internationale.com/)

Criador e Presidente da Faculdade Livre de Medicina Natural (FLMNE – https://flmne.org/) , foi um dos últimos assistentes do Dr Albert Schweitzer em 1964 em Lambaréné, no Gabão, e ainda participa em muitas missões humanitárias.

Obras e Descobertas: Inventor do conceito de ressuscitação urbana (Bône, Argélia), na origem do SAMU (1962); Iniciador do conceito de etnomedicina em missões humanitárias (1987); Contribuição para a compreensão das patologias degenerativas: Esclerose múltipla, cancro, esquizofrenia, Parkinson, miopatia, Alzheimer. (1988); Desenvolvimento de fórmulas eficazes em várias patologias virais (hepatite, herpes, gripe aviária, SARS, chikungunya, …). Prémios: Mérito francês e devoção por serviço excepcional à comunidade humana (1979); Grande Prémio Humanitário (1982); Medalha da Cidade de Paris, Vermeil echelon (1983); Medalha da Cruz Vermelha (1984); Medalha de Caridade, “Rainha Helena de Itália “1992; Figurado em Who’s Who (1996); Listado no Livro de Recordes como ‘Cirurgião das 14 Guerras’ (2000)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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